Algumas coisas que aprendi a trabalhar num cruzeiro

Começo por dizer que as aprendizagens e as introspecções são pessoais e intransmissíveis. O que quer dizer que as minhas conclusões podem estar erradas ou não fazer sentido a outras pessoas que tenham, ou não, passado pela mesma experiência. A mesma experiência não implica iguais resultados. Não quando estamos a falar de reacções de pessoas. Dito isto, vou começar.

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Um dos meus gabinetes no navio

Comecei a trabalhar num cruzeiro em 2014. Contrato de 7 meses. Nesses tinha 3 meios dias de folga por semana, a ser gozados em dia de porto: quando o navio está atracado e há menos pessoas a bordo.

Não vou falar dos funcionamentos internos do navio, nem do SPA, nem das formações de segurança e incêndios que tivemos no decorrer do primeiro mês, Water Tight Doors, cinemas, espectáculos, fusos horários, idiomas , prisão ou morgue . Poderei talvez no futuro escrever sobre isso. Vou falar de algumas conclusões a que cheguei no decorrer da minha estadia:

Aprende-se a dar valor a “pequenas coisas”:

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Vista da escotilha do meu quarto

Coisas como ter um quarto com privacidade e com uma janela com luz natural é um luxo quando se trabalha num cruzeiro. Claro que os Oficiais têm direito a estas regalias, mas a maior parte dos trabalhadores têm os seus quartos abaixo do nível da linha de água. Isto acontece porque os quartos acima da linha de água estão reservados para os passageiros e não para os tripulantes. E como o espaço é limitado, a maioria dos quartos são partilhados, nunca se chegando a ter real privacidade em momento nenhum. Tendo estado a trabalhar como Acupunctor e Osteopata tinha um estatuto semi-Oficial, o que me concedia estas vantagens, mas a maior parte dos meus colegas não.

As prioridades mudam:

Neste momento quando passeio perto de Santa Apolónia, Alfama ou mesmo Baixa compreendo Crew Members dos cruzeiros ligados à net nos bares e restaurantes. Coisas como internet que aqui em Portugal temos em todo o lado e Wi-Fi gratuito em praticamente toda a parte, não existe em alto mar. Há internet, sim, mas é muito cara por ser serviço de satélite. Então, uma das coisas que eu fazia sempre quando tinha folga e chegava a um porto era ligar-me à net para receber emails e para o meu computador enviar os emails que eu tinha escrito offline. Outra era comer comida fresca tradicional dos pontos onde parava. A comida no cruzeiro é boa e luxuosa, mas quando se conhece o menu queremos provar comidas locais. A prioridade de ter rede e ver os emails todos os dias é algo que não é importante no navio.

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Embarkation Day, o navio está atracado para Guests entrarem

As pessoas nunca estão tão bem nem tão mal como dizem:

Quando ouvia algumas pessoas a falar sobre a Crew Life, ou da vida em geral, focavam-se nos aspectos positivos, que normalmente são os que marcam mais, ou os que são mais relevantes de contar ou porque estão “ofuscados” pelas coisas boas. Não falam dos aspectos menos bons ou das dificuldades que tiveram para chegar onde chegaram. Da mesma maneira, quando uma pessoa descreve um problema, normalmente não se distancia do acontecimento, está tão entranhado e identificado com o acontecimento que não vê ou não conta todas as coisas boas que estão a acontecer. Há sempre parcialidade e pode-nos induzir em erro. (É obvio quando vemos um colega de trabalho que só se lamenta do trabalho miseravel, mas nas redes sociais é só maravilhas e gratidão pela vida.)

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Um dia depois, noutro hemisfério.

Gestão de conflitos é muito importante:

Estar num cruzeiro é uma montanha russa de emoções. Não existe um dia sem acontecimentos imprevisíveis. Os dias equivalem a semanas fora do barco. Devido ao facto de estarmos 24 sobre 24 horas com os camaradas Crew Members conseguimos conhecê-los e criar ligações fortes que só conseguiríamos em terra passado vários meses ou até anos. Todas as emoções são exponencializadas. Quando é bom é mesmo bom. Se conhecemos alguém e nos enamoramos é muito bonito. Mas quando é mau é muito mau. Se nos damos mal com um colega de trabalho não podemos, como se faz em terra, não o/a ver, ou ir passear a sítios onde não esteja. Não se pode ir dar uma volta e espairecer e só voltar a ver o colega no próximo dia de trabalho. É possível que o/a encontre na cantina dos trabalhadores, ou no Back Deck (convés reservado aos trabalhadores), ou, para quem partilha quarto, é possível que o colega de trabalho partilhe o mesmo quarto. Aprender a lidar com o/a colega, esclarecer mal entendidos, expor o nosso ponto de vista e aprender a lidar com os outros é imperativo para se viver sem dar em louco.

Içar ancoras para sair do sítio:

Estou aqui a usar uma metáfora. Mas quem está num cruzeiro e está com a cabeça em alguém que deixou em terra ou num projecto pendente vai sofrer muito. Vi colegas a desistir passado duas semanas de lá estar. Já me tinha apercebido disto, por observação, quando estive na Tailândia pela primeira vez. Estar num sitio mas estar com o coração ou cabeça noutro lado é não estar em lado nenhum. Não estou “aqui”, mas também não estou “lá”. Quanto mais livre se está, mais conseguimos estar centrados em nós e viver o momento. Quando estamos presos a uma casa, a um trabalho, a pessoas e a projectos dificilmente vamos sair de onde estamos. Não é uma coisa má ter projectos e relações, simplesmente vida nómada não é para todos.

No navio estamos sempre a trabalhar:

Mesmo quando estamos fora da hora de trabalho ou nas horas das refeições, se estamos numa área de passageiros, podemos sempre ser abordados por algum passageiro a quem a nossa placa identificativa de acupunctor chamou a atenção e quer saber o que fazemos. Ou mesmo quando não estamos em horário de trabalho, temos de estar imediatamente prontos para actuar em caso de incêndio ou emergência, a qualquer hora que seja, noite ou dia.

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Bailarinos num dos musicais que vi a bordo.

Armazenamento é um recurso:

Quando o espaço é limitado o espaço de armazenamento também o é. O armazenamento nunca é infinito, por isso aprende-se a dar atenção ao que é mesmo importante e o que é supérfluo.

Diversidade é oportunidade:

Muitas vezes temos a tendência inconsciente de nos relacionarmos com quem temos (ou achamos que temos) mais afinidade.Naturalmente gostamos mais de pessoas, ou de estar com pessoas, com quem temos algo em comum. Mas numa situação em que temos obrigatoriamente de trabalhar com pessoas sem nada em comum, aprendemos muito mais com eles, da cultura deles, e descobrimos imensas coisas que afinal temos em comum. Mas acima de tudo, aprendemos e evoluímos como pessoas. Ouvir outros pontos de vista abre-nos os olhos.

(legenda: vista da escotilha do meu quarto num dia com um pouco de ondulação)

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